Lisboa tem de ter algum tipo de recorde para as salas mais bizarras utilizadas na organização de pequenos concertos underground. Não se consegue explicar o que é ver um concerto de punk, ou hardcore, numa sala como a Casa de Lafões. Aliás, contado, é mesmo impossível descrever o que é a Casa de Lafões. Mas eis que a bizarria da sala da Madalena ganha um concorrente de peso, mais habituado a outro tipo de bailaricos, mas igualmente cada vez mais habituado a trocar a marcha popular pelo two step. De novo, ninguém se acreditaria perante uma descrição cénica e de ambiente da sala do Ginásio do Alto do Pina. Não vou sequer tentar, deixo somente o repto para que, numa outra ocasião, a lá se desloquem. Nem que seja para, durante um qualquer concerto, levar com um pouco de estuque caído dos céus.
A tarde marcava o fim da mini tour encabeçada pelos LIFEDECEIVER e pelos Don’t Disturb My Circles, mas é um daqueles cartazes que, mais nacional, era impossível. Os LIFEDECEIVER vinham de Coimbra. Os Step Back! retornavam à capital vindos de Penafiel. Os A Thousand Words vinham do Algarve e, a receber todos este misto de sotaques, os lisboetas Pussy Hole Treatment e Don’t Disturb My Circles.
Os Pussy Hole Treatment terão ficado bastante agradados pelos problemas de logística iniciais que levaram a um atraso no início dos concertos. À hora marcada, teriam tocado para si e bandas restantes. Assim, a banda conseguiu desde logo reunir na sala cerca de 40 pessoas (que poderá soar pouco, mas tendo em conta a dimensão da sala e arrumação da mesma, significa a sala praticamente composta), desde o início. A banda, de cara lavada – isto é, novos membros, nada em relação aos hábitos higiénicos dos mesmos -, vai demonstrando o seu amadurecimento sonoro que, pontualmente, se vai desviando daquilo que conhecíamos da banda. Uma intro bastante melódica, por exemplo, é sintomático disso mesmo. Uma cover, bastante personalizada, diga-se, de Have Heart (“Lionheart”), idém. A banda compôs o seu set com incidência nas músicas do split lançado com Never Fail e no seu EP “Destroy Everything Now”, tendo ainda apresentado músicas novas, a lançar brevemente.
Sem dúvida a banda mais deslocada do cartaz - num género pouco habituado a este tipo de desvios musicais -, os Don’t Disturb My Circles tiveram de lutar contra isso mesmo e contra, ainda, problemas técnicos iniciais no seu set. A banda foi distribuindo hardcore caótico na onda de uns Everytime I Die, The Number Twelve Looks Like You ou, mesmo, Dillinger Escape Plan ou Converge. Riffs, como se disse, bastante caóticos, momentos bastante diferentes dentro da própria música, que simulam músicas dentro de músicas, numa espécie de musinception. Uma grande presença em palco (ou mesmo na ausência dele, face ao concerto se ter realizado no chão), bem em consonância com a música que ia sendo, permita-se-me, despejada. Uma banda que merece uma maior abertura de espírito do público, quando, como em cartazes como este, se encontra mais desviada. Mas, acima de tudo, uma banda que merece ganhar o seu próprio público, de um estilo ainda pouco desenvolvido por cá.
Mais tradicional será o som dos A Thousand Words, principalmente quando a banda ainda vai tocando as músicas presentes na sua demo e, por isso, mais antigas. A Intro da banda continua a fazer estragos e a ser a música mais concorrida em termos de adesão. Algo que, se acredita, poderá estar para mudar, bastante somente para isso a banda lançar finalmente algo novo. E este, nota-se, é o principal handicapda banda: falta de entrosamento e empatia com o público, motivado pelo desconhecimento do mesmo em relação aquilo que é tocado pela banda, que resulta na pouca adesão e participação do mesmo. É que, musicalmente, nada falha na banda. Nem mesmo com um membro de recurso a substituir um dos elementos full time da banda. É uma banda que tem uma presença como poucas. É uma banda que tem uma sensibilidade e uma técnica musical como poucas. É, sem dúvida, uma das principais bandas do hardcore nacional. A banda continua, então, a demonstrar o poder que as músicas novas têm e que só podem deixar excitado qualquer pessoa que goste de hardcore, precisando ainda assim, de ter um set mais fluido e sem tantos cortes. “Bottom Feeder” dos Rise & Fall terá, ainda, feito as delícias daqueles que gostam de ouvir covers de bandas famosas nos concertos.
Um dos casos mais enigmáticos do hardcore nacional, será sempre o dos LIFEDECEIVER. Poucas bandas são tão profissionais e apresentam um produto tão cuidado e tão pensado quanto esta. Não há como ficar indiferente, quando entramos na sala e temos uma tela de fundo gigante com a imagem da banda. Não há como ficar indiferente a uma banda que, na sua banca de merch, tem de tudo, de qualidade, e apelativo visualmente. Não há como ficar indiferente a lançamentos bastante trabalhados ao nível da imagem, que transmitem uma ideia de brio e profissionalismo que, muitas vezes, falha em demasiadas bandas (seja por decisão própria, ou manifesta falta de vontade ou visão). E, se tudo isto não bastasse, a banda musicalmente não tem, nem nunca teve, qualquer tipo de comparação a nível nacional e, é mesmo muito dificil encontrá-la a nível mundial. E talvez a estranheza daí possa advir. Mas é uma banda que, por tudo isto, vai demonstrando que terão de ser considerados uma das grandes bandas nacionais, mas, igualmente, uma das mais subvalorizadas. Os LIFEDECEIVER apresentavam, neste fim de semana, músicas dos novos releases que a banda tem preparados. O split com Utopium está já disponível e o split com Don’t Disturb My Circles para lá caminha. Músicas que, ainda assim, podem ser ouvidas na tape (também acabada de lançar), que contempla as músicas dos splits. Tudo isto compôs o set da banda, numa presença em palco irrepreensível que não deixa espaço a qualquer tipo de observação. Num set que, até uma falha de luz, parece fazer parte do próprio espéctaculo, face a toda a imagética e conceito da banda.
E todo o pó da sala foi tirado com o concerto dos Step Back!, tecto incluído. Se a banda já se havia mostrado em forma dias antes no Montijo, no Alto do Pina a banda esteve simplesmente dopada. Um concerto de banda grande que pouco terá ficado a dever aos mais que aclamados For the Glory, Devil in Me ou Reality Slap. E tudo acaba por ser ainda mais bonito quando, para além de uma banda em claro estado de graça (riffs e mais riffs, voz super versátil e groovy que faria corar de inveja vocalistas de bandas de nova iorque), e um som da sala sempre perfeito (mesmo tendo em conta as aparentes dificuldades de acústica da mesma), o público se rende desde o primeiro acorde – eu diria até que ainda nem tinha começado o acorde e já havia sides to sides, desde o “palco” até ao merch. -, à mesma. A banda foi desfilando algumas das músicas que já lançara, interpelou-as com música nova e deitou a sala abaixo com uma irónica “World Peace” dos Cro-Mags. A verdade, viu-se, é que a paz mundial não pode mesmo ser feita. Não num concerto de Step Back!.
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